
Às vezes, a própria sonoridade da palavra dá o fio melódico da canção que vou compor. Ainda que a peça, ao final da inspiração, se traduza apenas uma composição literária, percebo ali uma melodia incontida. Um tempo depois, ela salta do texto e me sobra apenas sinonimizar algumas palavras; e a harmonia entre letra e música acontece. Não consigo compreender isso. Essa indomabilidade me incomoda, assusta e encanta.
O SEMEADOR
Newton Baiandeira
É preciso regar de suor os canteiros do chão
É preciso afagar a semente na palma da mão
E sentir o tremor da emoção que a semeia nos dá
Acariciar a terra com toda a chama
Que queima nossa alma de plantador
É preciso vencer pelo mel a maldade do sal
É preciso entregar a si mesmo o direito de ser
E sentir que nascemos de novo no sopro de um sol
Que nos empurra às luzes de um novo tempo
E nos devolve a força de plantador
É preciso rever os milagres que a terra traduz
Em distâncias de flores e frutos do sêmem de Deus
E sentir desconforto de ver que ainda falta um refrão
Que ainda a canção é frágil pra ser um hino
Que ainda somos meninos sem direção.
FORA DA ÓRBITA
Newton Baiandeira
Vivo em permanente estado de poesia.
Algumas vezes, saio pra dizer besteiras,
Xingar o mundo, insultar o tempo;
Descompor o tirano, clamar à vida.
Aí, lembro de minha mãe a me corrigir:
“Menino, a vida é bela. A gente é que estraga ela!”
Então volto, agradecido, farto.
CAÇA E CAÇADOR
Newton Baiandeira
Me chama de prazer
Me trata por amor
Me chama pra brincar de caçador
E se esconde
Não responde
Meu amor.
Ai, que saudades de nós!
Desentoca
Sai da loca, por favor!
Já não agüento brincar
De caça e caçador.
CÓRREGO DA PENHA
Newton Baiandeira
Sai da nascente
Desce as escadas
Corta a cidade
E vai embora.
Visto de cima
Parecem lágrimas
Rolando dos olhos
Do velho Cauê.
FIM DA CANÇÃO
Newton Baiandeira
Bem-te-vi te via
Sabiá sabia do amor
que eu sentia ao te ver
No amanhecer do sol
Lá vinha o rouxinol cantar pra você.
Era um coração no peito a disparar
Inventando pulsações pra te ganhar
Você não quis ouvir meus ais
E se foi, sem mesmo dizer adeus.
Bem-te-vi me viu chorar
Sabia o sabiá que era ao final solidão.
Rouxinol emudeceu
E a vida compreendeu o fim da canção.
ÁGUA CORRENTE
Newton Baiandeira
Quem espera por mim
Não sabe a cor da mocidade
Não pintou com claridade
As cores todas da razão
Não me cobre a presença
Que a presença é tão difícil
Pode ser que o orifício
Continue a esperar
Água corrente
Amanhã finda janeiro
Normalmente fevereiro
Pinta no segundo mês
Mas certamente
Como a coisa tá mudada
Pode ser que de mancada
Dê janeiro outra vez
Outra vez eu perdi
A direção do pensamento
Corre estrada, voa vento
Corre o tempo sem parar
Para trás, ventania
Simpatia não te espera
Tu levaste a primavera
E eu nem sei pra onde olhar
Olhar depressa
Tem cheiro de mau-olhado
Coração apaixonado
Pela pele do Brasil
Brasil, gigante coração
Pele dourada
Da morena revoada
Que o meu coração partiu
Partiu pra longe, avoou
Qual passarinho avoador
Rasgou o céu
Cortou o véu e ninguém viu
Nas asas turvas do avião
Deixando curva a sensação
Deixando história
Pra memória do Brasil
Solidariedade
Mocidade independente
Sem lugar, sem presidente
Continente sedutor
Águas claras de rio
Pele fina de esperança
Lua nova, semeança
Terra solta que se abriu
Abriu a porta
Do meu peito aventureiro
Me tomou como um guerreiro
Em posição de atirar
Água corrente, coração aventureiro
Não tem pena do aguaceiro
Que afoga o meu olhar
Maravilhoso demais...
ResponderExcluir