OLÁ, AMIGOS!

Como retribuir ao universo a dádiva da vida, pensava. Agradecendo a Deus todos os dias. Dividindo com o mundo o que de melhor me ocorresse na alma, o que eu mais amasse em mim. E respondia à minha própria busca: Arte, a única coisa que diferencia os homens. Eis então minha oferenda ao mundo, minha contribuição para a humanidade: minha arte. Melodia como veículo de minha poesia e vice-versa, minha arte sou eu, levando a quem quiser ouvir minha forma de compor, escrever e cantar o universo e o acontecer das coisas que vivencio. O que canto ou escrevo é o que há de mais profundo em meu coração. Rogo por agradar a quem me ouvir ou ler. Benvindos e obrigado pela visita! Newton Baiandeira





sábado, 18 de setembro de 2010

A ALMA DO FERRO

A cidade de Itabira completa 162 anos de emancipação política. Carlos Drummond de Andrade, 108 de nascimento. A cidade comemora com festa. E o cantor, compositor e poeta itabirano, Newton Baiandeira celebra com seu outubro poético:

A CIDADE, O POETA, A ALMA DO FERRO

A casa é grande, a noite maior, o medo demora mais no quarto. A cabeça coberta deixa o corpo molhado, mas nada passa de assombro pelo veludão. A gameleira frondosa caindo sobre a janela abriga a coruja. Maldita coruja! Eu não a conheço, mas sei que ela quer me pegar. Tuturututu! Seu canto, como garras, rasga meus tímpanos. O cobertor me sufoca, mas eu sei que ela entrou, que já está no quarto. A lua grande e branca cercada de sombras passa vagarosamente pelo vidro da janela. Greta de coberta, eu vejo noites de medos meninos. Sou até a alma arrepios.

À esquerda, chão de terra, o morro abaixo leva á porteira da fazenda. É lá que mora “Nota”. É uma mulher muito bonita, contam. Sabe, toda sexta-feira à meia noite ela toma uma surra não se sabe de quê ou quem. Da última vez a polícia a encontrou na manhã do sábado, toda ferida. Apanhara muito e fora deixada amarrada de arame farpado na porteira. Á noite, eu sempre ouço o vai e vem triste da porteira. A mata que fundeia a casa, dizem, guarda muitos espíritos ruins.

São 6 horas de uma manhã de sol e calor e as minhas irmãs vão pra escola. Setenta e cinco degraus da mais longa escada de pedras levam à estrada principal, lá em baixo. A carroça do leiteiro passa às 10 horas e o burro cansado pára pra comer o capim da beira. São seis garrafas de leite no engradado e não pesa tanto ao menino quanto a carroça ao burro. Setenta e cinco degraus para cima, agora assim, o sofrimento da volta. Não é qualquer cansaço da subida que dói. Distância e demora pra retomar os brinquedos largados à grama é que martirizam o moleque. Por fim, café tomado, vou me chafurdar na grama, montar o carneiro e perseguir galinhas até à hora do almoço.

Minhas irmãs já vêm da escola e a música mais bonita que meus ouvidos sabem contar ecoa em suas vozes:
“Este grupo, este bairro, esta usina
Acesita é uma grande poeta
A vanguarda que afinal nos ensina
Tudo aqui, cada qual é um afeto
Carlos Drummond de Andrade
Todas as pedras do caminho
Este grupo escolar vencera
O brá, gibi, giribi, brá, brá,
Vencerá, vencerá, vencerá.”

Um senhor branco e louro, de olhos azuis e outros traços alemães, convidara meu pai a vir pra Itabira, Prometera-lhe emprego na Companhia Vale do Rio Doce. Confiante meu pai abandonou a Usina em Sá de Carvalho. Juntou a família, botou a mudança nas mulas e veio. Promessa não cumprida, meu velho viveu apenas alguns dias de decepção, um exato mês. Deixou viúva e seis filhos, eu segundo caçula dos homens.

Quando aqui cheguei tinha seis anos. Carlos Drummond de Andrade, se até então fora apenas um prédio escolar na minha memória infantil, era agora um homem. E poeta, o maior entre todos. Itabira, a Cidade do Ferro, sua terra. Mais que Cabral ou Colombo, eu descobrira um novo mundo, ganhara um amigo ilustre e todas as nuances de uma avassaladora paixão. Criança pra compreender, gigante para amar, era eu! “Carlos Drummond de Andrade, todas as pedras do caminho...” O refrão do hino da Escola de Acesita não saía da minha cabeça.

A cidade parecia odiar o seu mais ilustre filho. Poucas pessoas do meu convívio seja nas ruas, no Grupo Escolar Cel. José Batista onde eu estudava ou mesmo na vila em que eu morava, se contava nos dedos aqueles que rendessem homenagens ao autor da frase maldita: “Itabira é apenas um quadro na parede.” À melancólica expressão da frase somava-se uma ira incompreensível. Ó Deus, meu prédio escolar, agora homem e então poeta, corre o risco de ser linchado e não tem “O Fantasma” que o salve dessa gente ruim! Eu tinha nove anos, pareciam cinqüenta. Bastiana, só Bastiana! Minha mãe sabia minha cruz.

Não sei se por compaixão infantil, mas a paixão não tardou em me tomar o peito e tudo que fiz dali até muitos anos foi buscar o poeta onde houvesse alcançá-lo. Professores, jornais, placas do comércio, qualquer informação servia. Informações, poucas e quase sempre rudes. Conhecer a obra de Drummond, “isso é lá coisa de menino? Na Escola faziam festa pra ele. Professores recitavam alguns poemas, mas falavam muito rápido, de não dar pra decorar. No recreio eu era um solitário quando o assunto era a polêmica drummondiana. Assim, levei anos pra conhecer um poema de Drummond por inteiro.

“Alguns anos vivi em Itabira, principalmente nasci em Itabira” e “No meio do caminho tinha uma pedra” em minhas “retinas tão fatigadas.” Era assim que eu misturava o pouco que conseguia da obra do poeta. Eu destacava o “principalmente nasci em Itabira” como contraponto à maldita frase que se referia ao quadro na parede. E muitos daqueles que juravam ódio pelo moço me davam moedas pra que eu recitasse aquela ajuntada poética. Riam, mas pagavam. Sei que recitando fragmentos de Drummond ou cantando as velhas canções que meu pai me ensinara e minha mãe não cansava de repeti-las, fiz de becos e ruelas de Itabira palcos e platéias, generosas remuneradoras.

Quando comecei a compor minhas próprias canções, escrever meus poemas, minha mãe dizia que esta seria uma carreira difícil porque em cada dez de minhas composições nove se referiam ao poeta ou à cidade. Eu respondia a tudo com mais músicas e poemas:
Minha vida é só um trem encantado
Carregado de minério em pó
Arrastando mil vagões
Somo solidões com futuros feitos de jornais
Tenho a sensação de Alcatraz
Juventude foi fim de linha
Coca-cola já perdeu o gás
Almas ao meu lado são minha direção
Num formato música/poesia
O meu mundo é nada mais que minerais
Preparando o pão de cada dia.

Assim, outubro itabirano é pra mim como fevereiro para um carnavalesco. Ao invés de três, trinta e um dias de folia; alegorias de ferro, cordões de poesia, blocos de camaleões, noites de mascarados, confete, serpentina, fagulhas de metais. Arlequins, pierrôs e colombinas, mais de cem mil palhaços no salão. Itabira é só um trem encantado: O Trem que Leva Minas.




Continua a partir de 1º de outubro...

Nenhum comentário:

Postar um comentário